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Writting

Limito-me a escrever sobre o que sei e o que conheço. O que não sei, deixo para os entendidos a árdua tarefa de escreverem sobre cousas cultas. Cousas cultas. Sempre me causaram certos e inexplicáveis arrepios. Talvez por não conhecê-las. Talvez por nunca ter ido ao encontro das mesmas. Talvez pelas páginas dos livros teóricos sempre me parecerem grandes bailadoras exibindo danças com as suas letras que nunca me levavam à sua compreensão. Por isso é que me inclinava a ler sobre cousas que me eram próximas. Letras que não troçavam de mim e formavam corredores organizados a que já poderia chamar de frases. Que cousas próximas seriam essas? Dormir. Comer. Sorrir. Andar. Amar. Pensar. Dessas eu não precisava de asteriscos nem de notas de roda pé complementares para compreender o seu significado. Eram imediatas. Faziam parte do meu ser desde que nascera. Por isso é que gosto de escrever sobre elas. Para que todos me possam ler. Para que as palavras e ideias não sejam cozinhadas numa grande sopa de conceitos e possam chegar até ao mais humilde e simples ser humano. 

O leite com Nesquik e o Rosário de Fátima

Aqui há dias fiz uma cousa que já não fazia há muito tempo e decidi beber um leite com nesquik. Fechei os horas e, ao primeiro gole, surgiu diante de mim a longa mesa de jantar dos meus avós e eu à cabeceira com uma grande cancelada de leite com nesquik. Era a minha ceia. A luz da cozinha estava baixa mas os azulejos azuis e brancos ainda aproveitaram a pouca luz para encher aquele espaço de pequenos reflexos. Atrás de mim a chaleira do chá fervia. Da sala vinham as luzes da televisão que estava em mute. Silêncio. Á volta ouviram-se passos e murmúrios. Eram os meus avós. Davam voltas à mesa de jantar enquanto rezavam o terço. “Nossa Senhora de Fátima pediu aos pastorinhas que rezassem todos os dias o terço” explicava a minha avó, ao que eu respondia “ Ela é um pouco estranha para fazer os avós andarem à volta da mesa todas as noites” “oh não, Natércia.” Continuava “Isso foi o médico que disse que eu e o teu avô tínhamos de fazer exercício e caminhas. Então aproveitamos a hora do terço para também fazer a caminhada.” E ela lá regressava às suas Avé Marias e à volta número 37. Ás vezes, por graça da parada, eu levantava-me e acompanhava as voltas à pista mas, como devem imaginar, um terço inteiro pode demorar o seu tempo a orar e eu tinha lá paciência para isso. E quando essas alturas chegavam era quando as melhores ideias surgiam. Muito sorrateiramente chamava o meu irmão, ainda pequeno, abríamos o armário da cozinha e tirávamos as panelas, tachos, colheres de pau entre outras cousas. Colocava-mo-nos em linha e… “1,2,3” lá começava o chinfrim que a minha avó tanto detestava. Batíamos fervorosamente nas panelas como se fossem tambores a rufar. Queríamos ser a melhor banda filarmónica do Casal Novo! E o meu avô ris-se enquanto a minha avó nos tirava a louça das mãos e nos sentava sossegados no sofá a ver snooker na eurosport.

O Capuchinho Vermelho

Avó, conta-me uma história para adormecer.

Era uma vez o capuchinho vermelho…

Já contaste essa muitas vezes avó.

Era uma vez o capuchinho cor-de-rosa…

A do capuchinho cor-de-rosa também avó.

Era uma vez o capuchinho verde…

Ah! Essa ainda não ouvi! Continua.

O Baloiço

Já vos contei a história de como aprendi a andar de baloiço?

Tinha eu 5 anos e andava no jardim de infância. O recreio era recheado de diversões! Escorregas, cordas, cavalos de mola, carrosséis. Mas aquilo que mais concorrência tinha e onde se chegava mesmo a fazer fila eram os baloiços. E não era uma fila qualquer! Para já havia a necessidade de irmos a pares (um para andar e outro para empurrar). E depois havia todo um conjunto de escolhas como a fila para o baloiço da esquerda que era mais baixo e a fila para o baloiço da direita que era mais alto. Ora nesse dia a fila estava particularmente grande e eu, como sempre impaciente, não queria esperar tanto tempo para andar 2 minutos num baloiço. Sim, porque havia colegas só para ver o tempo que cada um andava. Então lembrei-me que nas traseiras do infantado havia um baloiço velho mas que ainda estava funcional. Virei-me para a Beatriz (a minha amiga que estava a fazer par comigo na fila) e contei-lhe o meu plano ultra secreto. Percorremos juntas o recreio até chegar às traseiras. Entre o baloiço velho e nós havia uma vedação verde. (pequena contudo) mas com ela também o peso na consciência de quebrar uma regra. E permanecemos uns segundos paradas em frente ao portão. Até que a Beatriz quebrou o silêncio e disse que queria voltar para trás porque não podíamos sair do recreio. Se fosse por outro motivo qualquer teria feito o mesmo, menina obediente como era. Mas era um baloiço! E eu gostava demasiado da sensação de voar no seu colo para retornar ao recreio. Passei para o outro lado da vedação, sozinha, e fui-me sentar no baloiço. Por uns momentos saboreei a minha vitória sentada e imóvel de sorriso no rosto mas, quando quis começar a baloiçar dei-me conta que não tinha a minha amiga para me empurrar. Permaneci ali parada e com cara de pau zangada durante algum tempo até que alguém surgiu. Assim que ouvi os passos pensei no sarilho em que me metera mas depois vi-lhe o rosto. Era o meu avô (que naquela altura trabalhava no infantado). Ele perguntou-me muito surpreendido o que eu fazia ali. Timidamente respondi-lhe com o meu desejo de andar de baloiço. Perguntei-lhe se ele me podia empurrar. “Empurrar?! Sabes que é mais giro quando andas sozinha por ti própria.” Mas ninguém naquele recreio retinha a maestria e o dominado do baloiço para me ensinar tal proeza. Foi então que o meu avô se aproximou. Eu pensava que ele me ia mandar embora dali mas, ao invés disso, ele contou-me muito baixinho como um segredo “Tens de por as pernas para a frente e depois para trás” e foi-se embora alertando-me para não demorar muito tempo. Nos primeiros minutos mexi eufóricamente as pernas mas nada acontecia. E, à medida que o meu entusiasmo crescia, eu ia-me inclinando cada vez mais e baloiçando cada vez mais. No fim, estava a andar mais alto como nunca. O meu coração soluçava com a adrenalina do sobe-e-desce. Quando finamente regressei ao recreio sentia-me a pessoa mais fixe do infantário. A paixão cresceu de tal maneira que os meus pais pouco tempo depois ofereceram-me um baloiço para ter no jardim. Nem imaginam o quão feliz eu fiquei!

 

    Ainda hoje recordo com carinho esta sensação de conquista. 

O Campo e a Cidade

Numa das vezes em que cheguei a Lisboa depois de um grande período de tempo na minha terra reparei que a mudança de escala, do tipo de movimento e barulho me fazia confusão. Tudo era 3 vezes maior: os prédios, as estradas, as ruas, havia mais pessoas, mais carros... Isso perturbava-me. Tentei então começar por procurar naquela grande cidade as pequeninas semelhanças que poderiam existir com a minha pequena terra. Comecei por olhar as estrelas, que apesar de menos, ainda existiam no céu escuro da noite. Foquei-me nos canteiros e perguntei-me se haveriam assim tantos canteiros na rua em Leiria como em Lisboa. Observei a luz dos mesmos e questionei os meus olhos se a temperatura de cor dos mesmos seria igual à dos candeeiros da minha terra. Tentei descobrir as lojas que existem em comum com Leiria e Lisboa. No meio do meu exaustivo e urgente jogo das parecenças de cidades revi-me num dos reflexos das montras. Rapidamente apercebi me de que, mais do que qualquer outra coisa que pudesse vir a encontrar, aquilo que mais em comum havia ali naquele momento entre Lisboa e Leiria era eu. Sorri. Apanhei a flor do canteiro que estava à minha beira e segui o meu caminho feliz. Já contemplava os carros, os altos prédios, cumprimentava os citadinos e não precisava de mais nada além de mim para sentir que encaixava-me na perfeição naquele lugar apesar de o mesmo não me pertencer de todo. 

Mas é só uma Linha

Há quem goste de ir à praia para poder mergulhar no oceano azul e brincar à apanhada com as ondas. Quem goste do calor da areia e de sentir a sua textura granulada debaixo dos pés. Há quem goste de meditar sobre longos passeios à beira mar ou ainda quem vá apenas para colher mais uma concha para a sua coleção. Quando me perguntam o que mais me encanta e o que me leva ao limite da costa obtenho sempre como resposta “Uma linha? Só isso?”. Sim, uma linha. E basta.

“Linha severa da longínqua costa” escrevia Pessoa em Mensagem. Mas este sabia porque escrevia sobre ela. Sabia traduzir o que a mesma lhe dizia. Como o fazia sentir. Como a descrever. Já eu, nunca soube bem ao certo responder à segunda pergunta imediata que me era colocada “ Porquê? Porquê esse fascínio?” e tornavam a dizer “É só uma linha”. Engraçado porque tal comentário feito ao meu gosto peculiar já tinha sido imensas vezes mencionado a Sugimoto a respeito sobre as suas fotografias do horizonte. Para mim, ele fui o único até hoje a conseguir verdadeiramente captar a essência do mar nomeadamente daquela tão poética e misteriosa linha. Eu bem podia tentar mostrar as suas fotografias para que as pessoas pudessem talvez perceber melhor o porquê do meu fascínio, visto achar que aquelas imagens retinham tudo quanto eu sentia face à linha. “Nem se percebe bem o que é” replicavam. “É só uma linha”. Talvez tivessem razão… Talvez Barthes tivesse certo quanto ao punctum. Talvez só a mim me tocasse aquelas fotografias por estarem relacionadas com uma sensação que só eu tinha ao experiênciar a contemplação da linha. Deixei então de tentar mostrar aos outros o que eu via na tentativa que estes me pudessem traduzir aquilo que para mim palavras não havia e questionei-me “Porquê essa admiração?” Recordei-me de que em pequena, e por vezes ainda hoje, gostava de me deitar ao nível do areal e silenciar o barulho das ondas e do vento, de levantar os olhos e fixar aquela linha azul escura bem lá ao fundo. Que calma. Que silêncio. Por vezes rodava a cabeça e via-a na diagonal. Agora parecia um rio que descia pelo areal abaixo. Ainda mais gostava eu de mudar a inclinação da cabeça e ver o rio subir as dunas ao invés de as descer. Acabava por ser um misto de uma imagem surreal com algo poético. Uma linha de água que subia infinitamente no entanto sem nunca chegar ao céu. Infinitamente. Muitos descrevem-na como infinita, no entanto, vejo-a antes como finita. Como uma corda fina mas forte que abraça o mundo e une todos os oceanos. Quando olho para ela não só vejo o atlântico nem as Américas mais lá ao longe mas também o pacífico, as suas ilhas, o indico. Acabo por numa linha ver o mundo todo. Talvez por isso é que sinta que receba tanta força ao olhar sobre a mesma. Talvez por isso sinta que dela venha tanta sabedoria e calma. Talvez. Mas enquanto esse talvez não se transformar numa certeza vou continuar a repetir a mesma pergunta, a mesma premissa. Vou continuar sem conseguir explicar ao certo o meu fascínio. Vou continuar a ouvir “mas é só uma linha”.

A Chuva está de Greve

No outro dia estava eu a sair de casa quando me cruzei com a Chuva. “Então senhora Chuva? Há quanto tempo! Pensei que estivesse doente. Aqui entre nós até havia quem achasse que tinha mesmo morrido.” “Eu? Morta? Têm cá uma lata! Querem é ver-me pelas costas é o que é!” “ Não diga isso que nós gostamos de si. Eu até tenho passado todas as semanas por sua casa para ver se já regressou.” “Desculpas. Cortesias é o que me diz a menina para que lhe fique bem na boca e na etiqueta! Eu bem sei o que andam a dizer nas minhas costas! Todos os dias era a mesma coisa. Logo pela manhã acordava com a porta cheia de ovos e imundices dessa juventude que acompanhando o seu vandalismo escrevia “Desaparece desmancha prazeres!” Era raro o Domingo em que ia à missa e não ouvia as comadres cochichar que eu lhes fazia muito mal aos ossos. Era minha culpa o estado de saúde delas, diziam. Então quando ia ao supermercado… Meu deus! Tanta voz alheia era o que era menina! Por minha presença que a dona Jacinta não tinha ido à praia ou o senhor António ido passear o cão. E a fazendeira no final da rua? Que sempre que me via passar naqueles tempos em que eu andava mais inchada mandava vir comigo por lhe apodrecer as hortaliças. Pois olhe minha filha, cansei-me! Não dão valor à velha Chuva então estou de greve!” “Mas não pode simplesmente fazer greve. Isso não é justo para nós” “E porque não? Não a fazem os professores deixando os meninos sem aulas? Não a fazem os condutores deixando as pessoas sem transportes? Não a fazem a policia? Os politicos? A função publica toda e privados? Por que diabos não hei eu de poder fazer greve! Pois faço-a! Faço-a e com todo o rigor de ausência na minha função. Tenho-o dito e dito está. Agora se me dá licença menina eu tenho que me ir embora que já perdi muito tempo por aqui. Tempo demais até!”
Essa foi a última vez que falei com a senhora Chuva. Para onde foi fazer a sua greve não sei mas de algo eu tenho a certeza: Deveríamos todos pedir-lhe as maiores e mais sinceras desculpas porque se ela continuar ausente creio que não viveremos muito para sermos perdoados.

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